Questões e respostas

Imagens e Objetos de devoção: que fazer quando já não servem?

No caso de imagens de santos/santas quebradas/partidas, qual o fim a dar, quando não é possível a reparação? E no caso dos terços, quando o mesmo não é possível recuperar, qual o fim que se pode dar? Já por diversas vezes que escutei dizer que as imagens (independentemente do tipo de material, incluindo as imagens impressas) e terços, não devem ser colocados no lixo, e segundo dizem devem ser queimados ou enterrados. Face a esta dúvida, gostaria de saber o que a Igreja pensa e solicita que se faça quando existem estas ocorrências.

 

Começaremos por dizer que desconhecemos legislação canónica ou orientações eclesiásticas oficiais aplicáveis. Por isso a opinião aqui dada não se reveste de autoridade vinculante. Se algum leitor mais informado conhecer normas emanadas por competente autoridade eclesiástica, agradecemos a partilha.
O consulente não esclarece se as imagens ou objetos em causa – terços, medalhas, escapulários… – foram ou não benzidas por ministro idóneo. De facto, para além das coisas que são «sagradas» em virtude de uma bênção litúrgica há uma multidão de objetos e imagens que são «sagradas» em sentido mais genérico pelo seu conteúdo religioso cristão: representações de Cristo, da Virgem Santa Maria, dos Anjos e dos Santos, de algum episódio da história sagrada do Antigo e do Novo Testamento ou da vida dos Santos, recordações piedosas de visitas a santuários ou de passeios turísticos, de valor e qualidade artística muito variável, peças de artesanato, objetos de adorno, postais, estampas, calendários, publicações várias…

Quase sem nos darmos conta, enche-se a casa de imagens e objetos de piedade que nem sempre correspondem à nossa sensibilidade espiritual e, consequentemente, não nos elevam à contemplação da glória do Senhor nem estimulam a nossa oração, não são uma festa para os nossos olhos, não impelem o nosso coração ao louvor divino nem nos estimulam a uma vida mais perfeita na imitação de Cristo e dos Santos. Objetivamente são «lixo», porventura «lixo devoto». Contudo, mesmo não lhes estando ligados por qualquer devoção ou afeição, não sabemos que destino lhes dar quando já não há mais lugar na cómoda nem nas gavetas… Porque à nossa sensibilidade crente repugna eliminar pela via mais simples – o vazadouro do lixo – estes sinais de piedade ou simples reproduções com conteúdo cristão, em múltiplos suportes, porventura desgastados/deteriorados, inutilizáveis.

O cân. 1171 do Código de Direito Canónico em vigor dá-nos uma indicação sobre como proceder no caso de coisas destinadas ao Culto divino pela dedicação ou pela bênção: «sejam tratadas com reverência e não se votem ao uso profano ou a outro uso não próprio, ainda que estejam sob o domínio de particulares». Diretamente, tratar-se-á de tudo o que está incluído na Dedicação da Igreja e do Altar ou na III parte de Celebração das Bênçãos (Ritual Romano): mobiliário litúrgico, alfaias, sinos, órgão de tubos, pias batismais, confessionários, paramentos, imagens e objetos sagrados… destinados ao culto público da Igreja. Mas, por extensão, também se poderá aplicar a recomendação canónica a objetos de piedade benzidos para culto privado, mais pessoal. O que a Igreja pretende é evitar a sua profanação, uso sacrílego ou contrastante com a piedade cristã, o que facilmente pode ocorrer se tais objetos forem deixados ao abandono ou depositados em lixeiras comuns.
Para aliviar espíritos mais escrupulosos, que quase fazem equivaler o efeito da bênção à consagração das espécies na celebração eucarística, e para serenar os que oscilam entre a piedade e a credulidade supersticiosa, misturando bênçãos com maldições, importa superar uma conceção material da bênção, como inerente à coisa benzida, algo de físico ou metafísico. Nesse sentido releiam-se os Preliminares do Ritual Celebração das Bênçãos: «todas as coisas que Deus criou e sustenta no mundo com a sua graça providente dão testemunho da bênção de Deus e nos convidam a bendizê-l’O» (CB 7). As bênçãos, referindo-se principalmente a Deus e derivadamente aos homens, «também se dirigem às coisas criadas, por cuja abundância e variedade Deus abençoa o homem» (CB 7). «Por vezes a Igreja abençoa também as coisas relacionadas com a atividade humana ou com a vida litúrgica e também com a piedade e o culto, mas tendo sempre em conta os homens que utilizam essas coisas e atuam nesses lugares» (CB 12). Ou seja, em última análise, o recetáculo da bênção das coisas é sempre o ser humano. É por isso que «normalmente, a celebração da bênção de coisas ou de lugares não deve fazer-se sem a participação de pelo menos algum fiel», ao menos «aquele que quer bendizer a Deus ou pedir a bênção divina» (CB 17).

Mais do que ser transformada na sua entidade, a coisa benzida adquire uma nova referência que reside mais no sujeito que dela faz uso, do que na coisa em si, materialmente falando. Acontece um pouco como na imagem/ícone sagrada em que a veneração tem por termo não o suporte material da mesma (tela, madeira, etc.) – cair-se-ia na adoração idólatra vetada pelo segundo Mandamento do Decálogo – mas a pessoa ou hipóstase nela representada de modo que a sacralidade do ícone reside nessa relação simbólica («semelhança») entre o objeto e o protótipo nele representado em traços e cores, mediando presença, encontro e comunhão de pessoas.

Portanto, mais do que a coisa «benta», é o crente com as suas faculdades, pessoa capaz de «entender», usar e viver símbolos, que é santificado pela bênção. Não é como na consagração eucarística em que – para usar o modo de falar do Magistério autêntico – a própria «substância» do pão e do vinho consagrados, na sua objetividade, passam a ser presença real do Ressuscitado na sua integridade humano-divina: corpo, sangue, alma e divindade. Aliás, mesmo no caso das espécies consagradas do Santíssimo Sacramento, é doutrina comum da Igreja que a presença substancial de Cristo cessa quando as espécies se corrompem ou degradam (por ex.: quando a espécie do vinho passa a vinagre ou quando a espécie de pão se desfaz num recipiente com água). Analogamente, também as coisas benzidas perderiam a sua capacidade de mediar a bênção quando estão de tal modo deterioradas pelo uso ou danificadas e destruídas por qualquer acidente que já perderam a sua integridade e dificilmente podem ser reconhecidas como aquele objeto de devoção e piedade sobre o qual se invocou a bênção. Diríamos que já não são «coisas sagradas».

Isso resulta de forma luminosa da leitura atenta das orações previstas na celebração das bênçãos de objetos de devoção. A graça invocada nas preces, mediante sinais e mediações sensíveis (em analogia com os Sacramentos), tem sempre as pessoas como destinatários, promovendo o seu crescimento na fé e devoção, capacitando-as para a contemplação do amor de Deus, transformando-as à imagem de Cristo, ajudando-as na vida presente rumo à vida eterna. Os objetos benzidos tornam-se sinais em que o significante material é totalmente relativo à realidade espiritual de que são memória e para o qual remetem no uso crente que deles faz a pessoa que assim é abençoada (CB 1173, 1175, 1181, etc.). Vejamos a título de exemplo, uma das bênção previstas para a coroa do rosário (terço): «Deus omnipotente e misericordioso, …dignai-Vos abençoar todos os que fizerem uso deste rosário em honra da Mãe do vosso Filho, rezando com os lábios e o coração, para que aumente dia a dia o fervor da sua piedade e, na hora da morte, a Virgem Santa Maria os leve à vossa presença» (CB 1199).

Postos estes considerandos, passamos a responder de forma mais direta à consulta: perante a degradação material ou excesso de objetos e imagens de piedade, benzidos ou não, como proceder?
Em primeiro lugar, deve avaliar-se se o(s) objeto(s) em causa, tendo em consideração o seu valor (devocional, material, artístico e estimativo) e o seu estado de conservação pode(m) e deve(m) ser restaurado(s) (havendo recursos para essa intervenção), ou conservado(s) de forma digna e reverente. Não sendo o caso, podemos seguir as instruções dadas em 1874 pela Sagrada Congregação para os Ritos e o Santo Ofício mesmo que a sua força vinculante já tenha caducado. Segundo tais orientações, os têxteis deviam ser queimados e as suas cinzas sepultadas; os ramos benzidos deviam ser queimados, reutilizando-se as cinzas resultantes na Quarta-feira de Cinzas do ano seguinte; imagens ou terços deviam ser enterrados… Este regresso à terra é a conclusão de um ciclo. Também os nossos corpos, que são templo do Espírito Santo, santificados pelos sacramentos, deverão um dia voltar à terra: «Lembra-te que és pó e ao pó voltarás!»

Aconselhamos cuidado com o uso de fogo, sobretudo nos apartamentos das nossas cidades que habitualmente não dispõem de lareira. Não repugna que as imagens impressas, em vez de queimadas, sejam recortadas de tal forma que os pedacinhos resultantes possam ser depositados no contentor destinado à recolha de papel ou de outro material de suporte. Os terços/rosários partidos ou incompletos podem, eventualmente, levar-se a alguma oficina de objetos religiosos onde se reutilizem as suas contas na feitura de novos terços…
Não deve, pois, haver qualquer temor em destruir objetos benzidos ou representações piedosas, fazendo-o, obviamente, com intenção reta, de forma recatada e sem qualquer intuito profanador mas antes com o objetivo oposto de prevenir a profanação por ação de terceiros, de forma inadvertida ou intencional e sacrílega.


(Publicado no BPL 189-192)