Questões e respostas
Oração eucarística, aclamação depois da consagração e anamnese
Gostaria que me ajudassem a entender o sentido da palavra "Senhor" na aclamação depois da consagração e na anamnese. O "Senhor" que aparece em ambas é o Pai ou é o Filho? Se são os dois, não seria de substituir uma das palavras?
Agradeço-lhe, em nome do Secretariado Nacional de Liturgia, as considerações amigas e de muito apreço que escreveu, testemunho da atenção com que segue os nossos trabalhos.
É com todo o gosto que vou tentar ajudá-lo a entender o sentido da palavra "Senhor" ao longo da Oração eucarística, e mais concretamente na aclamação depois da consagração, na anamnese e na oblação.
Começo por clarificar o sentido das quatro expressões que acabo de citar, servindo-me, exclusivamente, das palavras com que a Instrução Geral do Missal Romano se lhes refere.
1. Oração eucarística
A Instrução Geral do Missal Romano refere-se, em muitos dos seus números, à Oração eucarística. Para não me alongar cito apenas os seguintes: 30, 72, 78, 79, 147. Em síntese, aí se diz que a Oração eucarística é o coração da Missa ou Ceia do Senhor; que só o bispo ou o presbítero lhe podem presidir e dizê-la, por força da ordenação recebida; que ao fazê-lo, se dirigem a Deus Pai, agem na pessoa de Jesus Cristo, e a realizam no poder do Espírito Santo, em nome de todo o povo, dando graças ao Pai do Céu pela obra da salvação, e convertendo as oblatas no Corpo e Sangue de Cristo; que participando na Oração eucarística, toda a assembleia se une a Cristo na proclamação das maravilhas de Deus e na oblação do sacrifício, escutando-a na fé e em silêncio, ou intervindo nos momentos previstos.
Da riqueza desta catequese litúrgica sublinho este ponto: toda a Oração eucarística, por ser oração de Cristo, embora pronunciada pela boca do bispo ou do presbítero, é dirigida ao Pai, pelo que, todas as vezes que eles dizem a palavra "Senhor", dentro desta grande Oração, é a Deus Pai que se dirigem, imitando, assim, o Filho de Deus feito homem, que ao rezar falava sempre com o Pai.
Assim procedeu sempre a Igreja, desde a primeira Oração eucarística historicamente conhecida, que pode encontrar em Antologia Litúrgica, n. 778, e começa assim: «Nós Vos damos graças, ó Deus, por Jesus Cristo, vosso muito amado Filho, que nestes últimos tempos nos enviastes (como) Salvador, Redentor e Mensageiro da vossa vontade. Ele é a vossa Palavra inseparável, por quem tudo criastes e que, porque assim foi do vosso agrado, enviastes do Céu ao seio de uma Virgem. Tendo sido concebido, fez-Se homem e manifestou-Se como vosso Filho, nascido do Espírito Santo e da Virgem».
E porque o faz a Igreja assim? Porque em tudo procura imitar Jesus, que enquanto viveu entre nós, sempre orou ao Pai e com Ele gostava de falar. Até de noite O procurava para dialogar com Ele as preocupações que sentia, pois não Lhe eram indiferentes as atitudes daqueles que O seguiam mais de perto, nem das multidões que ora O aclamavam como rei, ora O abandonavam, desinteressadas das verdades de vida que Ele lhes ensinava. Gosto idêntico ao de Jesus continua a orientar a Igreja na sua oração, principalmente na Oração eucarística.
No século IV, um Concílio de Cartago presidido por S. Agostinho, determinou mesmo que «nas preces, ninguém deve nomear o Pai em vez do Filho, nem o Filho em vez do Pai, e quando se estiver ao altar, a oração (=Oração eucarística) deve ser sempre dirigida ao Pai; e, se alguém copiar para si próprio um modelo de preces feito por outrem, não o utilize antes de o ter submetido a irmãos mais instruídos» (Antologia Litúrgica 2260). A razão desta norma é fácil de perceber. Quem preside à Eucaristia é Cristo e quem ora é Cristo. E Cristo ora ao Pai, não ora a Si mesmo. O bispo ou o presbítero que presidem à Oração eucarística, fazem-no na pessoa de Cristo, ou seja, procedem como Ele sempre procedeu; falam com o Pai.
Outro é o modo habitual de proceder dos fiéis. Eles falam de preferência com Jesus, o Mediador entre Deus e os homens, e a Jesus rezam porque assim o aprenderam dos Apóstolos. Com o Pai, falam quase exclusivamente quando dizem a oração que Jesus lhes ensinou: Pai nosso, que estais nos Céus. Mas é a Cristo que se dirigem na aclamação depois da consagração, como irei explicar de seguida, chamando-Lhe Senhor, anunciando a sua morte ressurreição, que já aconteceram, e proclamando antecipadamente a sua vinda gloriosa, no fim dos tempos.
2. Narração da instituição e consagração
Sobre a narração da instituição e consagração diz a Instrução Geral: «Mediante as palavras e gestos de Cristo, realiza-se o sacrifício que o próprio Cristo instituiu na última Ceia, quando ofereceu o seu Corpo e Sangue sob as espécies do pão e do vinho e os deu a comer e a beber aos Apóstolos, ao mesmo tempo que lhes confiou o mandato de perpetuar este mistério (IGMR 79,d).
O que se infere deste texto da Instrução, é que a narração da instituição e consagração é um dos elementos principais da Oração eucarística, por ser constituído pelas próprias palavras e gestos de Cristo na última Ceia. Vou analisá-la com algum pormenor.
Consagração do pão
Na consagração do pão vem sempre, em primeiro lugar, a evocação do momento em que Jesus celebrou a Ceia com os Apóstolos. Só depois se faz referência à sua paixão, e ao gesto de Ele ter tomado o pão em suas mãos: Na véspera da sua paixão, Ele tomou o pão em suas santas e adoráveis mãos (OE I); Na hora em que Ele se entregava, para voluntariamente sofrer a morte, tomou o pão (OE II); Na noite em que Ele ia ser entregue, tomou o pão (OE III); Quando chegou a hora em que ia ser glorificado por Vós…, durante a Ceia, tomou o pão (OE IV).
Referem-se a seguir os gestos de Jesus relativamente ao pão: levantando os olhos ao céu, dando graças, abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos (OE I); dando graças, partiu-o e deu-o aos seus discípulos (OE II); dando graças, abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos (OE III); abençoou-o, partiu-o e deu-o aos seus discípulos (OE IV).
Por fim, citam-se as palavras que Jesus pronunciou, iguais em todos os relatos: Tomai, todos, e comei; isto é o meu Corpo que será entregue por vós.
Consagração do cálice
A segunda parte da narração é dedicada ao cálice: De igual modo, no fim da Ceia, tomou este sagrado cálice em suas santas e adoráveis mãos (OE I); De igual modo, no fim da Ceia, tomou o cálice (OE II); De igual modo, no fim da Ceia, tomou o cálice (OE III); De igual modo, tomou o cálice com vinho (OE IV).
Evoca-se a seguir o que Jesus fez com o cálice: dando graças, abençoou-o e deu-o aos seus discípulos (OE I); dando graças, deu-o aos seus discípulos (OE II); dando graças abençoou-o e deu-o aos seus discípulos (OE III); dando graças, deu-o aos seus discípulos (OE IV).
Por fim, citam-se as palavras que Jesus pronunciou neste momento, iguais em todos os relatos: Tomai, todos, e bebei: este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e eterna aliança, que será derramado por vós e por todos, para remissão dos pecados. Fazei isto em memória de Mim.
O cuidado destas narrações deixa-nos adivinhar o encanto com que a Igreja as guardou na sua memória. Nada do que Jesus disse e fez foi esquecido, e nada deve ser acrescentado ao que Ele fez e disse nesses dois momentos da celebração da Ceia. Esses gestos do Filho de Deus, em hora tão solene, são para fazer, em sua memória, até que Ele venha; e as suas palavras são para repetir, sem lhes alterar o sentido, e, se possível, a própria forma, enquanto esperamos a sua vinda gloriosa.
Aclamação depois da consagração
Durante muitos séculos, a Liturgia romana limitou a intervenção dos fiéis na Oração eucarística apenas a três momentos: no diálogo do prefácio, no Sanctus e no Amen final. Tal tradição ocidental foi quebrada pela última reforma litúrgica, ao acrescentar mais uma intervenção dos fiéis: a aclamação depois da consagração. Considero-a uma das mais felizes novidades introduzidas pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, e digo-o por três razões: a) porque dá voz, uma vez mais, à assembleia dos fiéis, durante a Oração eucarística; b) porque tal intervenção ajuda a quebrar, muitas vezes, a monotonia da voz do presidente; c) porque dá ao povo cristão o ensejo de chamar "Senhor" Àquele que o é até do próprio sábado (cf. Mt 12,8).
Jesus é "Senhor", como o afirmamos nas invocações iniciais da Missa, no canto do Glória a Deus nas alturas, na aclamação depois do Evangelho, na profissão de fé ou Credo. É caso para dizer: a palavra "Senhor" é tão importante neste contexto celebrativo, que nenhuma outra serve para a substituir. Só ela está certa. Mortem tuam annuntiamus, Domine, et tuam resurrectionem confitémur, donec venias, diz o texto latino do Missal Romano. Sim, é a morte e ressurreição de Jesus que anunciamos; é a sua última vinda que esperamos. Ele já morreu e ressuscitou, mas há-de voltar uma segunda vez, no fim dos tempos, para julgar os vivos e os mortos. Que nesse dia e nessa hora Ele nos encontre a fazer o que nos mandou, a Eucaristia, e a proclamar a nossa fé com todo o coração. E uma vez que o ministro ordenado só pode dirigir-se ao Pai, dentro da Oração eucarística, chamando-Lhe Senhor, que ao menos a assembleia chame "Senhor" a Jesus, nosso Deus, Redentor e Salvador, dizendo: Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!
3. Anamnese e oblação
Cito uma vez mais a Instrução Geral: «Em obediência ao mandato, recebido de Cristo Senhor através dos Apóstolos, a Igreja celebra a memória do mesmo Cristo, recordando de modo particular a sua bem-aventurada paixão, gloriosa ressurreição e ascensão aos Céus. No memorial, a Igreja, de modo especial aquela que nesse momento e nesse lugar está reunida, oferece a Deus Pai, no Espírito Santo, a hóstia imaculada. A Igreja deseja que os fiéis não somente ofereçam a hóstia imaculada, mas aprendam a oferecer-se também a si mesmos e, por Cristo mediador, se esforcem por realizar de dia para dia a unidade perfeita com Deus e entre si, até que finalmente Deus seja tudo em todos (IGMR 79, e-f).
A anamnese litúrgica é a recordação perfeita e viva, em obediência ao mandato recebido de Cristo Senhor e por sua graça, dos acontecimentos centrais da fé cristã: o nascimento de Jesus, a vida pública, a Boa Nova, a Ceia, a paixão, a ressurreição, as aparições, a ascensão aos Céus, e todas as coisas que Ele fez e ensinou enquanto conviveu com os Apóstolos, e que, segundo o Evangelho de S. João, "se fossem escritas, uma por uma, penso que o mundo não teria espaço para os livros que se deveriam escrever" (Jo 21, 25).
Para que recorda a Igreja esses acontecimentos salvadores durante a celebração eucarística? Para os tornar presentes à assembleia reunida, a fim de que, com Cristo, por Cristo e em Cristo, Ela os ofereça agora, pelas mãos dos seus ministros e dos fiéis, ao Pai celeste, no poder do Espírito Santo, e também para deles receber as infinitas graças que a morte redentora de Jesus neles deixou impressa para sempre.
Assim se exprimem a anamnese e a oblação da Oração Eucarística II: «Celebrando, agora, Senhor, o memorial da morte e ressurreição de vosso Filho, nós Vos oferecemos o pão da vida e o cálice da salvação e Vos damos graças porque nos admitistes à vossa presença para Vos servir nestes santos mistérios».
É evidente que este "Senhor" do qual se fala na anamnese e na oblação, é o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ambos, o Pai e o Filho, são Senhores, com letra grande, na unidade do Espírito Santo, que é Senhor e fonte de vida.
É só a Eles, Trindade Santíssima, que a Igreja presta culto de adoração. A Eles a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amen.
Um colaborador do SNL