Questões e respostas
Oração Eucarística II
Tenho-me interrogado sobre a razão de aparecer o vocábulo “dispersa” na Oração Eucarística II. Retomo o contexto: “Lembrai-Vos, Senhor, da vossa Igreja, dispersa por toda a terra, e tornai-a perfeita na caridade…”. O termo dispersa evoca habitualmente a falta de comunhão, a desunião, que é precisamente o contrário do que se pretende dizer, como se evidencia logo a seguir no próprio texto. Preferiria o termo presente, pois indica uma presença sem quebrar a comunhão.
Caríssimo Padre: Vou responder-lhe sem subterfúgios, começando por lhe dizer que a sua pergunta é razoável e pertinente. Digo isto porque a solução encontrada por vários Missais não foi unívoca, apesar de partirem todos, como é óbvio, do mesmo texto latino, que é o seguinte:
«Recordare, Domine,
Ecclesiae tuae, toto orbe diffusae,
ut eam in caritate perficias
una cum Papa nostro N.
et Episcopo nostro N.
et universo clero.»
1. Versões de outros Missais
O primeiro passo que demos, ao preparar a resposta a enviar-lhe, consistiu em consultar outros Missais que tínhamos à mão. O resultado da investigação foi este:
a) Missal Italiano: “diffusa su tutta la terra”. Missal Francês; “répandue à travers le monde”. Missal Castellano: “extendida por toda la tierra”. Missal Português: "dispersa por toda a terra"; Missal Brasileiro: "que se faz presente pelo mundo inteiro".
Como é fácil de verificar, todas estas traduções utilizaram um adjectivo para verter "diffusae": diffusa, répandue, extendida, dispersa, presente, o que está de acordo com a fidelidade material ao texto latino.
b) Mas nem todos os tradutores entenderam que deviam manter a perfeita correspondência material entre o latim e a tradução. Assim, no Missal Inglês lê-se: “Church throughout the world” (Igreja em todo o mundo); e no Missal Alemão: “Kirche auf der ganzen Erde” (Igreja em toda a terra).
Como vê, nestas duas últimas traduções omite-se o adjectivo que corresponderia a "diffusae".
2. Razões que tornam aceitável a nossa tradução e igualmente aceitável a proposta do consulente
Apesar de só uma das traduções utilizar o adjectivo "presente" para traduzir "diffusae", e de a tradução portuguesa ("dispersa") ser apoiada pelas de três outros países europeus ("diffusa", "répandue" e "extendida"), o que a torna perfeitamente aceitável e fiel ao latim "diffusae", não nos custa admitir que a proposta do consulente ("presente em toda a terra") também o é. Vamos explicitar melhor o nosso entendimento.
a) A expressão "dispersa" é válida e entende-se bem, porque antecedendo “vossa Igreja”, o adjectivo ("dispersa") “por toda a terra” sugere claramente que se trata de separação meramente física, geográfica, isto é, não no sentido de separação espiritual. Aparece assim várias vezes, na versão portuguesa do Missal Romano, como, por exemplo, na Vigília pascal: “Nesta noite santíssima, em que Nosso Senhor Jesus Cristo passou da morte à vida, a Igreja convida os seus filhos, dispersos pelo mundo, a reunirem-se em vigília e oração” (latim: "Ecclesia invitat filios dispersos per orbem terrarum"); "para que a Igreja, dispersa por todo o mundo" (latim: "ut Ecclesia tua, toto orbe diffusa"; Sexta-Feira Santa, Oração universal, I intenção); "para que a santa Igreja, dispersa por toda a terra" (latim: "ut Ecclesia sancta, toto orbe diffusa"; Missas e orações para diversas necessidades ou várias circunstâncias, 1. Pela Igreja D).
b) Por outro lado, a proposta “presente em toda a terra” também é aceitável, porque o mesmo adjectivo “dispersos” é utilizado na Oração Eucarística III em sentido diverso, a saber, referindo-se precisamente à separação espiritual: “Atendei benignamente às preces desta família, que Vos dignastes reunir na vossa presença. Reconduzi a Vós, Pai de misericórdia, todos os vossos filhos dispersos” (latim: “Omnes filios tuos ubique dispersos tibi, clemens Pater, miseratus coniunge”). Assim, o mesmo termo “dispersa/dispersos” é utilizado com significado diferente (contrastante) numa e noutra Oração Eucarística. Na Oração Eucarística II fala-se da “Igreja” (fisicamente) “dispersa”; na Oração Eucarística III fala-se dos “filhos” (espiritualmente) “dispersos”.
Conclusão minha: é correcta a versão actual, porque fiel ao latim e próxima de outras traduções europeias; mas parece-me muito aceitável a do consulente “Igreja presente em toda a terra”, ou a sugerida pelos alemães e ingleses “Igreja em toda a terra”. Mas se ficar como está não parece pecado.
3. O ponto de vista bíblico
O termo "dispersar/dispersa/dispersos" encontra-se inúmeras vezes na Bíblia no sentido de separação meramente física.
Apenas a título de exemplo cito estas passagens: Gen 10,5; Lev 26,33; Deut 4,27; Juiz 21,24; 1 Sam 11,11; 1 Re 14,15; 1 Mac 6,54; Sal 106,27; Jer 23,8; Ez 12,15; Mc 14,27 ("Jesus disse-lhes: Todos ides abandonar-me, pois está escrito: Ferirei o pastor e as ovelhas hão-de dispersar-se"); Act 8,1 ("Saulo aprovava também essa morte. No mesmo dia, uma terrível perseguição caiu sobre a igreja de Jerusalém. À excepção dos Apóstolos, todos se dispersaram pelas terras da Judeia e da Samaria").
Se tiver uma Bíblia com um bom índice, ou uma versão electrónica com um bom motor de procura, verá multiplicada por dez a pequena lista de textos que acabo de indicar.
4. O ponto de vista da liturgia
A liturgia não tem nada a opor à frase "a vossa Igreja, dispersa por toda a terra", por duas razões:
a) Porque o termo português “disperso/dispersa” vem do verbo latino “dirpergo, is, spersi, spersum”, que nos dicionários se traduz textualmente por “espalhar por diversas partes, disseminar, semear, lançar para um e outro lado, dispersar” (=no sentido de separação física de um mesmo elemento). É também nesse sentido que se exprime um versículo do salmo 111 (112), 9, citado em 1 Cor 9, 9 e muito usado nos elogios dos santos, especialmente os que se dedicaram às obras de misericórdia: “Dispersit, dedit pauperibus; iustitia eius manet in aeternum” (="Distribuiu, deu aos pobres; a sua generosidade permanece para sempre”). Além disso, se o texto latino quisesse dizer "presente", não teria qualquer problema em empregar o termo "praesens"; que razões terão levado os autores do texto latino a optar por "diffusae" em vez de "praesens"?
b) Porque o termo "diffusae – dispersa" nos traz à memória a oração da Didaqué, sobre o pão partido: "Nós Te damos graças, nosso Pai, pela vida e pela ciência que nos revelaste por Jesus, teu servo. Glória a Ti pelos séculos. Assim como este pão partido estava disperso pelos montes, e, depois de colhido, se tornou um só, assim se reúna a vossa Igreja dos confins da terra no teu reino. Pois tua é a glória e o poder por Jesus Cristo, pelos séculos" (Didaqué ou Doutrina dos Doze Apóstolos, 9; Antologia Litúrgica 202). É provável que, no texto latino actual da Oração Eucarística II, haja alguma reminiscência da antiquíssima súplica da Didaqué e também do texto original da Oração Eucarística de Hipólito de Roma, a mais antiga que chegou até nós, que se exprimia assim na súplica final: "Reunindo na unidade todos aqueles que participam nos vossos santos mistérios, dai-lhes a graça de serem repletos do Espírito Santo…" (Hipólito de Roma, Tradição Apostólica, 4; Antologia Litúrgica 778).
5. Revisão e aprovação da tradução portuguesa do Ordo Missae
Posso ainda acrescentar que, ao longo dos trabalhos da revisão final da tradução do Ordo Missae, nomeadamente da Oração Eucarística II, a única observação feita à tradução em causa veio do saudoso P. Tomás Gonçalinho, e resumia-se a isto: em vez da expressão "dispersa por todo o mundo" (era assim o texto anterior) propunha, em alternativa, "espalhada ou difundida por toda a terra". O grupo de trabalho aceitou a expressão "por toda a terra" em substituição de "por todo o mundo", mas nenhum dos outros dois termos propostos "espalhada ou difundida" foi aceite como substituto de "dispersa" (cf. notas das reuniões de revisão do "Ordo Missae").
Terminados os trabalhos de revisão do Ordo Missae por parte do Secretariado Nacional de Liturgia, o texto foi enviado à Conferência Episcopal, e recebeu as "apreciações" de alguns Bispos portugueses. Depois de as estudar com cuidado, o Secretariado, através do seu Director Mons. Aníbal Ramos, de tão querida memória, enviou este texto ao Secretariado Permanente da Conferência: «Ao texto final do Ordinário da Missa, que o Secretariado Nacional de Liturgia submeteu à aprovação da Conferência Episcopal na Assembleia Plenária de 9 a 12 de Dezembro de 1980, alguns Bispos, a título individual, fizeram observações e propuseram alternativas que o Secretariado Nacional de Liturgia estudou na sua reunião de 5 de Janeiro de 1981 e acerca das quais deixa aqui o seu parecer… Em relação à fórmula "Igreja, dispersa por toda a terra", há uma proposta para substituir "dispersa" por “difundida", com base na conotação de "dispersa" com uma situação de dispersão anterior a Cristo, que veio reunir os filhos de Deus que andavam dispersos. O Secretariado não gosta de "difundida" e acha que o sentido geográfico de "dispersa" é suficientemente claro e não levanta problemas». Mons. Aníbal escreveu à margem da cópia deste texto, arquivada no Secretariado: "O Conselho Permanente aprovou o termo "dispersa”.
Aqui lhe deixo, caríssimo padre, estas reflexões. Antes de as compor definitivamente pedi a outro colega que me ajudasse com as suas próprias achegas, a fim de não lhe expressar apenas o meu pensamento.
6. Conclusão
Resumindo o que lhe quis dizer, penso que a nossa tradução da Oração Eucarística II é fiel ao sentido do original latino que lhe está subjacente, mas reconheço, ao mesmo tempo, que a tradução por si proposta ficaria igualmente bem.
Um colaborador do SNL