Questões e respostas

A propósito da tradução litúrgica de uma palavra do Salmo 47 (46)

Tenho reparado na tradução de um dos versículos do salmo responsorial (Salmo 46) que se canta na Missa da Ascensão do Senhor: “…o Senhor, o Altíssimo, é terrível”. Verifico que o mesmo Salmo 46 aparece, com essa mesma tradução, noutros cânticos litúrgicos dos Padres Manuel Luís, Fernandes da Silva, Ferreira dos Santos, Carlos Silva. Mas encontrei algumas honrosas/felizes excepções, onde a palavra “terrível”, é assim substituída: “… o Senhor, o Altíssimo, é Sublime”, “… o Senhor é “excelso” e “portentoso”. Consultando um dicionário verifico que à palavra “terrível” são atribuídos os significados seguintes: “que inspira terror”; “medonho”; “assustador”; “extraordinário”; “grande”; “forte”; “violento”; “muito mau”. Com excepção de três destes significados, todos os demais são desagradáveis de ouvir, pelo sentido negativo que a palavra “terrível” inspira, se aplicada a Deus, que é “bondade”, “amor” e “misericórdia”. Então parece-me uma grande contradição continuarmos a cantar que “… o Senhor, o Altíssimo, é terrível” e, por isso, parece-me razoável que no Salmo 46 fosse substituída a palavra “terrível” por uma das que apontei atrás: “sublime”, “excelso”, “portentoso” ou outra de significado semelhante.

 

Começo por agradecer ao nosso consulente o trabalho que teve em documentar a sua questão. É um trabalho que merece elogios. Diante de uma dificuldade, procurou primeiro encontrar a solução com os seus próprios meios e chegou a duas conclusões: há compositores musicais que, apesar de sentirem as mesmas dificuldades que ele próprio sentiu na utilização da palavra “terrível” aplicada a Deus, não tiveram coragem de a substituir por outra, não sei se por respeito pela tradução litúrgica oficial, se por outras razões; e outros houve em quem o sentimento de inconveniência do dito vocábulo foi mais forte do que o respeito pela tradução oficial e não hesitaram em trocá-lo por outro que lhes pareceu mais adequado.

Ambas as opções merecem o meu respeito e reconheço que da adopção de uma ou de outra não vem mal ao mundo. Ouvi muitas vezes da boca de um professor de Sagrada Escritura que toda a tradução é uma traição, pelo que admito haver “traição” quer no vocábulo “terrível” aplicado a Deus, quer em qualquer dos outros apontados e sugeridos pelo nosso consulente.

Dito isto, não para lhe captar a simpatia mas porque é assim que penso, deixe-me dizer-lhe outras coisas que me foram indicadas por um especialista destes assuntos ao qual consultei antes de lhe responder a si.

1. O Saltério, que foi o primeiro texto traduzido para a Liturgia, dada a sua presença em todos os livros litúrgicos, foi trabalhado ardorosamente por várias pessoas e comissões, por profissionais biblistas, liturgistas, linguistas (filologia, morfologia, sintaxe e estilística), como está mandado.

2. Curiosamente, o termo em questão é utilizado em todas as Bíblias oficiais de língua românica: além da portuguesa, a castelhana, a francesa, a italiana, a catalã, a galega – nenhuma delas prescinde desse termo “terrível”, “terrible”, “terribile”.
O mesmo acontece com as Bíblias não oficiais mas críticas e recentes, como a “Bíblia de Jerusalém” nas suas línguas diversas, a francesa “Traduction Oecuménique de la Bible” (=TOB), a de Osty, a de Shökel, a “Bíblia pastoral” portuguesa, etc..
Uma ou outra tentam amaciar um pouco o termo com “temível”, como faz a Bíblia dos Capuchinhos. Mas a grande maioria opta simplesmente por “terrível”. Aliás, “temível” tem a mesma cor.

3. O recurso apenas aos dicionários da língua é equívoco, pois em cada termo apresentam várias aplicações e significados diferentes, por vezes até a metáforas ou aplicações diversas. Para identificar os termos bíblicos o único dicionário é a Bíblia e a sua exegese.

4. Permita que seja eu agora a fazer algumas perguntas. Porque será que nenhuma Bíblia utiliza – para substituir o termo “terrível” – outro adjectivo mais “manso”? Porque é ele o único que corresponde ao original hebraico? Porque será que nenhum dos adjectivos que o nosso consulente cita aparece em qualquer Bíblia? Hipótese minha: talvez porque nenhum deles seja a tradução correcta do texto hebraico subjacente! Note que faço perguntas e aponto respostas possíveis.
As expressões “excelso” e “sublime” não podem substituir o “terrível”, porque são quase sinónimas de “Altíssimo”, estabelecendo um pleonasmo ou tautologia ou desdobramento. Quem utiliza tais atributos não está a traduzir o Salmo, mas a adaptá-lo de modo subjectivo ou como paráfrase, aproveitando-se dele para servir de inspiração a um cântico que lhe parece mais conveniente, e eliminando uma palavra que consta dos textos originais, fazendo de conta que ela não existe.
É certo que Deus está no centro do cristianismo, que “o Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade” [Salmo 102 (103)], que o Senhor é caridade, amor, misericórdia, etc., mas também é “justo juiz” (2 Tim 4,8) e “De novo há-de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim” (Credo ou Símbolo da fé). Se fôssemos a excluir todas as referências a Deus que parecem incomodar pela sua “dureza” ou por aparecerem como menos simpáticas, “honrosas ou felizes”, teríamos de suprimir ou adaptar estes e muitos outros incisos bíblicos.

5. O nosso consulente acha que o adjectivo “terrível” parece impróprio para se referir a Deus. Está no seu direito, se tal palavra lhe fere a sensibilidade. Conheço pessoas que nunca dizem Deus “todo poderoso” ou “omnipotente”, porque lhes soa a “prepotente”, “autoritário”, “despótico”. Algumas substituem tais expressões por “Deus de bondade”, mudando claramente o sentido do original. Nas orações invocamos a Deus “todo poderoso” porque “tudo pode”. “Senhor, que tudo podeis, dai-nos o que pedimos”. Uma pessoa boa mas indigente não pode dar porque não pode, embora quisesse.
Ora, Deus “todo poderoso” ou “omnipotente” corresponde ao Pantocrator greco-latino e aproxima-se do “Deus Sabaot”, “Deus dos Exércitos” (celestes) ou até do universo, protector e salvador.

6. Embora não seja minha intenção amontoar argumentos para o convencer, deixe-me dizer-lhe, caríssimo consulente, que há quem chegue a pôr em questão, no ensino da catequese às crianças, o uso da palavra “Pai”, utilizada por Jesus como revelação máxima de Deus, pela simples razão de que há crianças com uma péssima experiência da figura do pai. Como certamente entenderá, o problema não está na palavra “Pai” aplicada a Deus, mas no sentido em que a entendemos a partir do comportamento de alguns pais. Ora, na terminologia cristã, não são os pais que devem servir de paradigma para entender quem é Deus Pai, mas o contrário: Deus Pai é que é o modelo mal imitado pelos nossos pais. Deus Pai é perfeitíssimo, ao passo que os pais humanos estão longe de o ser. Não foi Deus que foi criado à semelhança do homem, mas o homem à semelhança de Deus.
Para terminar, só mais um exemplo: no Catecismo da Igreja Católica os “dons do Espírito Santo” (inspirados na Sagrada Escritura), concluem com o sétimo: “O temor de Deus”. Ora “temer” a Deus não é “ter medo” de que Deus me faça mal, mas sim “ter medo” de eu O vir a ofender. O “temor de Deus” é uma virtude que se encontra por toda a Bíblia, principalmente nos Salmos, nos profetas e nos livros sapienciais. “Felizes os que temem o Senhor”, canta-se imensas vezes nos salmos responsoriais. O “temor” do Senhor e os que “temem” o Senhor não é nada terrível nem temível, mas antes a consciência da nossa pequenez, confiada na reverência e no amor divino.
Vou concluir com um princípio abrangente: os nomes divinos do hebraico podem ter vários significados, por vezes com sentidos diversos. Contudo o “Altíssimo” e “terrível/temível” inspiram reverência e temor de Deus. São para tomar a sério mas de modo confiante.

7. Em tudo o que lhe disse, caro consulente, não está implícita a ideia de que as traduções litúrgicas, nossas e dos outros países, são sempre exemplares. A prova está à vista. De edição para edição há palavras, frases e expressões que vão sendo modificadas, como facilmente pode constatar-se. Mas uma coisa é aperfeiçoar determinada palavra ou expressão em busca de maior fidelidade ao sentido original, outra bem diferente é adaptar ou mesmo “inventar”. No caso vertente da tradução do v. 3 do Salmo 47 (46), causa-me impressão que todas as traduções consultadas utilizem a palavra “terrível” ou equivalente, e que nenhuma a substitua por outra menos “dura”. Porquê? Por insensibilidade ou por outras razões que escapam aos não especialistas, como é o meu caso e não sei se o seu? Vou dar o benefício da dúvida aos especialistas, pois creio que também a eles não agradará muito aplicar a palavra “terrível” Àquele a quem chamam “Deus Altíssimo”. Só o fazem, penso eu, porque lhes parece a mais adequada à tradução do conceito subjacente. Não é esse, aliás, o único lugar dos salmos onde eles optaram por essa mesma palavra ou pelo sinónimo mais próximo, “temível”: “Deus é temível no seu santuário” [Sal 68 (67), 36]; “Sois temível; quem poderá resistir, quando se inflama a vossa ira?” [Sal 76 (75), 8]; “O Senhor é grande e digno de louvor, mais temível que todos os deuses” [Sal 96 (95), 4].


Um colaborador do SNL