Questões e respostas
Divórcio
Sou casado pela Igreja há 26 anos. Há um ano atrás, a minha mulher disse-me que ia sair de casa, porque já não me amava. Fiquei abalado com a situação, dado que sempre nos demos bem. Disse-lhe que não entendia o porquê de tal decisão, ao que ela respondeu que não havia motivo nenhum, que era ela que era assim. Ainda lhe pedi para ficar mais uns tempos, por causa de dois miúdos que adoptámos como filhos. Não aceitou. Os miúdos passam uma semana comigo e outra com ela. Já me disse que tínhamos de tratar dos papéis do divórcio. Eu estou sem saber o que fazer. A minha questão é esta: se eu assinar os papéis, fico divorciado pelo civil mas continuamos casados pela igreja? Eu posso voltar a amar outra pessoa ou pela atitude dela devo ficar sozinho porque caso contrário cometo adultério? Por favor ajudem-me a encontrar um caminho?
Obrigado, caro consulente, por ter querido partilhar connosco as suas tristezas, preocupações e dúvidas. Como não nos conhecemos, estou à vontade para lhe escrever uma palavra que lhe possa levar algum conforto, sem deixar de ser verdadeira e honesta, como se impõe, em casos destes.
Começo por lhe dizer que, além de ser padre, sou também pároco. Na minha paróquia há um Lar de Idosos pertencente à Igreja, no qual trabalham treze funcionárias. Há cerca de cinco anos, o marido de uma delas disse-lhe certa manhã, antes de sair para o emprego: "Logo à noite não venho dormir a casa e nunca mais virei". À pergunta da esposa, admirada e chocada com tais palavras, limitou-se a responder: "Estou farto de viver aqui. Não tenho nada contra ti, nem contra o nosso filho, mas vou-me embora". E assim o fez, apesar de ser cristão de Missa dominical, membro da Direcção do referido Lar e pessoa estimada pelo pároco.
O segundo caso, que vou relatar-lhe, foi exactamente o inverso deste primeiro. Desta vez, a protagonista foi uma outra empregada do referido Lar, casada e mãe de dois filhos, que disse um dia ao marido: "Vou-me embora para casa da minha mãe. Não quero viver mais contigo e não tenho sequer razões a dar-te. Governa-te que eu tentarei fazer o mesmo". Se bem o disse, melhor o fez, abandonando marido, os dois filhos e a própria casa, sem qualquer razão conhecida que o justifique.
Foi em guisa de introdução que lhe relatei estes factos de que tenho conhecimento directo. Em face deles e de muitos outros semelhantes que haverá pelo país fora, muita gente se pergunta: a que será isto devido? Que causas e razões estarão por detrás pelo menos de muitos destes dramas familiares?
Atrevo-me a adiantar uma dessas razões: o casamento (não importa se católico se civil) que deveria ser considerado e tratado como realidade séria e estável, passou a ser visto por muitas pessoas, baptizadas ou não baptizadas, como um assunto trivial semelhante a outros que os homens e as mulheres levam entre mãos, cuja manutenção se justifica apenas enquanto se goste ou se deseje aquele ou aquela que um dia se escolheu por esposa ou marido, mas que pode acabar quando ambos os cônjuges ou apenas um deles decida fazê-lo por razões pessoais. No meu entender tudo parte daqui. Estamos, portanto, no terreno dos valores que nos orientam na vida e que são decisivos na hora de tomar opções.
Bem diferentes eram, para Jesus, os valores do casamento. O Evangelho põe na sua boca estas palavras: «O que Deus uniu, não o separe o homem» e ainda: «Se alguém repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério». Isto é: para o Filho de Deus o casamento era uma realidade séria. A sua manutenção contra ventos e marés estava longe de ser considerada chinesice, como alguém já escreveu.
O mesmo se diga para os cristãos que, depois de Jesus, optavam pelo matrimónio, como o afirma um autor anónimo do séc. II: «Os cristãos não se distinguem dos demais homens, nem pela pátria, nem pela língua, nem pelos costumes. Efectivamente, eles não têm cidades próprias, não usam uma linguagem peculiar, e a sua vida nada tem de excêntrico. A sua doutrina não procede da imaginação fantasiosa de espíritos exaltados, nem se apoiam, como outros, em qualquer teoria simplesmente humana. Vivem em cidades gregas ou bárbaras, segundo as circunstâncias de cada um, e seguem os costumes da terra, quer no modo de vestir, quer nos alimentos que tomam, quer em outros usos; mas a sua maneira de viver é sempre admirável e passa aos olhos de todos por um prodígio. Cada qual habita a sua pátria, mas vivem todos como de passagem; em tudo participam como os outros cidadãos, mas tudo suportam como se não tivessem pátria. Toda a terra estrangeira é sua pátria, e toda a pátria lhes é estrangeira. Casam-se como toda a gente e geram filhos, mas não se desfazem dos recém-gerados. Participam da mesma mesa, mas não do mesmo leito. São de carne, mas não vivem segundo a carne. Habitam na terra, mas a sua cidade é o Céu. Obedecem às leis estabelecidas, mas pelo seu modo de vida superam as leis» (Carta a Diogneto 5; EDREL 458). Quando se lêem, sem preconceitos, páginas semelhantes a esta, fica-se a sonhar com esses tempos em que a fé cristã era a grande norma de vida dos discípulos de Jesus, e na influência que tais valores exerceram no espírito e nos costumes de uma sociedade pagã.
Hoje em dia, o casamento civil é regulamentado por leis mutáveis, ao gosto dos legisladores e dos critérios de quem detém o poder, leis que se alteram consoante as pressões, os interesses e os valores do momento, e por outro lado a sua dissolução tornou-se num processo rápido e fácil, quando se faz por mútuo acordo. Um simples funcionário do registo civil tem competência para a declarar.
No caso de divórcio civil litigioso, isto é, quando um dos cônjuges se lhe opõe, as dificuldades serão maiores, mas acabam sempre em vitória por parte do cônjuge que o deseja. Ao fim de um processo judicial um pouco mais demorado do que no divórcio por mútuo acordo, a parte que se recusara a aceitá-lo é "obrigada" a dizer sim e a assinar a documentação respectiva, para evitar consequências gravosas para si. É o que ouço dizer a pessoas que passaram por tal situação. Conclusão: a lei favorece a parte que deseja divorciar-se, penaliza ou "obriga" a parte que o não deseja a aceitar a decisão da outra, valoriza apenas a liberdade pessoal de cada cônjuge e ignora o valor da estabilidade conjugal, tratando-a com desdém.
Relativamente ao casamento canónico ou casamento pela Igreja, a lei civil não tem qualquer direito ou poder sobre ele enquanto sacramento. Mas, por efeito da última Concordata, entre o Governo português e a Santa Sé, tem-no sobre os seus efeitos civis, podendo declarar a dissolução do respectivo vínculo civil. As consequências são óbvias: perante a Igreja os cônjuges continuam a ser casados, ao passo que para o Estado passam a ser divorciados. Uma vez que a Igreja os considera casados, não podem realizar novo casamento religioso, e a situação em que ficam não é tranquila para uma consciência que preza os valores religiosos e os ensinamentos de Jesus.
Esta é a realidade político-social em que vivemos e à qual estamos sujeitos. Concordando ou discordando dela, todos os cônjuges lhes sofrem as consequências ou usufruem dos consequentes "benefícios", consoante o ponto de vista pelo qual o problema seja considerado.
No casamento canónico cristão, as palavras de compromisso de ambos os cônjuges são estas: «Eu, N., recebo-te por minha esposa [por meu esposo] a ti, N., e prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida». Não se trata de um compromisso menor, mas maior. Faz-se em determinado dia, mas é para enquanto a vida durar. Não é só para as horas boas, mas também para as más. É uma promessa de amor (prometo amar-te), de respeito (e respeitar-te), e de fidelidade (todos os dias da nossa vida). Estas três palavras - amor, respeito e fidelidade - constituem a estrutura do casamento cristão. Pode ser difícil manter, alimentar e desenvolver tal estrutura, mas é ela que permite às pessoas, unidas por tais vínculos, gozar de uma vida em comum, assente na confiança mútua. Confiança mútua quer dizer segurança íntima de alguém que crê em alguém ou nalguma coisa, certeza, fé, aceitação, convicção, entrega. O casamento católico assenta em valores humanos permanentes, por se entender que a vida confiada por cada um dos cônjuges ao outro é o seu bem mais precioso, um autêntico bem sagrado: «Já não são dois, mas um só» (Mt 19, 6).
O problema do divórcio não é doloroso só para quem o vive. Também o é para a Igreja, que nasceu do coração de Cristo e se sente espartilhada entre a fidelidade ao Senhor (não separe o homem o que Deus uniu) e a misericórdia da qual Ele foi testemunha insuperável (sede misericordiosos como o vosso Pai do Céu é misericordioso).
É na iniludível necessidade e urgência de dar resposta a este dilema que radica o Sínodo dos Bispos subordinado ao título Os desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização, iniciado em 2014 e a continuar em 2015, que tanta tinta já fez gastar sobretudo aos meios de comunicação e levou à tomada de posições nem sempre direccionadas à busca da verdade de Jesus.
Estamos todos em expectativa, à espera do recomeço dos trabalhos dos Bispos. Acredito que o que eles decidirem, cum Petro et sub Petro (com o Papa e em comunhão com o Papa) é a verdade para o tempo de hoje. Vamos esperar.
Pergunta se pode voltar a amar outra pessoa ou se a atitude da sua mulher o aconselha a ficar sozinho. Essa resposta terá o caro consulente de a dar a si mesmo. Ninguém se lhe pode substituir. Amar é uma coisa; ter relações sexuais com outra mulher fora do casamento é outra. Ser fraco e pedir perdão é uma coisa; colocar-se deliberadamente numa situação de vida em comum com outra mulher e ter relações sexuais deliberadas com ela é outra. Não é preciso que seja eu a escrever isto. A consciência cristã formada à luz do Evangelho não diz outra coisa. Eis o que, de momento, posso escrever-lhe para não me alongar demasiado.
Termino com uma pergunta: o que lhe diria Jesus se o caro consulente tivesse a graça de O ver à sua frente e lhe fizesse a Ele a mesma pergunta que nos fez a nós? Acha que, apesar da infinita misericórdia de que sempre deu provas inequívocas em todas as situações de sofrimento humano com que Se encontrou, mudaria alguma coisa às palavras que o Evangelho nos transmite?
Um colaborador do SNL