Questões e respostas

Tradução contestada

Um «apóstolo» de mestre não identificado questiona: «O Missal Romano, em Português, reformado e mesmo publicado, concretamente, na “ORAÇÃO EUCARÍSTICA I”, suscita-me uma dúvida. Na versão ali publicada, diz: “Pai de infinita misericórdia, humildemente Vos suplicamos, por Jesus Cristo, vosso Filho, nosso Senhor que Vos digneis aceitar e abençoar + estes dons, esta oblação pura e santa.” Porém, o mesmo Missal Romano (de Paulo VI), na mesma parte afirma: “Te ígitur, clementíssime Pater, per Iesum Christum, Fílium tuum, Dóminum nostrum, súpplices rogámus ac pétimus, uti accépta hábeas et benedícas + hæc dona, hæc múnera, hæc sancta sacrifícia illibáta”. Porquê retirado, ou não acrescentado o conteúdo e a profundidade Eucarística de “...estas ofertas, estes sacrifícios santos e imaculados...” no cânone? Qual a razão disto? … É que a forma de retirar estes termos, transmite, linguisticamente e teologicamente, um significado muito sério …».

 

Comecemos por notar que esta tradução, que o interpelante parece ter descoberto agora, já está em uso há 55 anos e foi devidamente aprovada pelos nossos Bispos e confirmada por Roma, ao tempo em que ainda se sabia Latim.

Posto isto, importa dizer que a tradução portuguesa é íntegra e integral, palavra por palavra. Haec dona, haec munera (repetição retórica) = «estes dons». Haec sancta sacrificia illibata = «esta oblação pura e santa». Se não aparece a palavra sacrifício, aparece um termo equivalente: «oblação». Aliás, a tradução oficial portuguesa contorna assim uma dificuldade do original latino que ao usar o plural – sacrificia = “sacrifícios” – se torna algo equívoco: serão «sacrifícios» as espécies, os dons ofertados, colocados no altar, ainda por consagrar, sobre os quais se faz o sinal da Cruz? Fizeram bem os tradutores portugueses em adotar o singular e usar o termo «oblação», de maior amplitude semântica, com a adjetivação de excelência («pura e santa»), fielmente traduzida do Latim, de sentido prolético, antecipatório. Entretanto, deve ficar claro que o Missal Romano Português não tem qualquer dificuldade ou relutância em utilizar o termo e o conceito de sacrifício. Efetivamente, como veremos de seguida, o mesmo é usado profusamente no nosso Missal o que, só por si, exclui qualquer hipótese de recusa ou censura.


Regra básica de uma boa hermenêutica

Para além desta resposta, breve e direta, importa recordar a regra fundamental da hermenêutica – que é também pressuposto da boa fé em qualquer diálogo honesto. A saber: o texto deve ser compreendido no seu contexto. Em primeiro lugar no contexto mais próximo; depois, no contexto de todo o livro; por fim, no contexto de toda a obra (ou seja, do autor).

O contexto próximo é de uma clara afirmação do conceito e do vocabulário sacrificial. Basta referir que a tradução portuguesa do Cânone Romano – a oração em causa – usa por 4 vezes a palavra «sacrifício». Mas o conceito e a doutrina são expressos por outros termos da mesma oração como se pode deduzir de uma leitura sem preconceitos. Por exemplo: «dons», «oblação», «oferecer», «oferenda», «redenção», «salvação»… Eloquentes são as aclamações de anamnese, novidade da reforma litúrgica, focadas na morte e ressurreição do Senhor, das quais destacamos a versão portuguesa da terceira: «Glória a Vós, que morrestes na cruz e agora viveis para sempre. Salvador do mundo, salvai-nos. Vinde, Senhor Jesus!». É o reconhecimento grato e jubiloso do sacrifício que superou os limites do tempo histórico (no Calvário de há dois mil anos, «sob Pôncio Pilatos») para ser presença real no altar da Igreja, «mistério da fé para a salvação do mundo». Ainda neste contexto de proximidade sugerimos a meditação da oração eucarística III, mais uma «novidade» da reforma litúrgica, tão rica de tradição católica.

Quanto ao contexto alargado do «livro» – o Missal Romano (fixemo-nos na edição oficial da CEP, de 2022) –, e prendendo-nos ao vocabulário, refira-se que a palavra «sacrifício» aparece por 368 vezes (375, se somarmos os casos em que se usa o plural), o que não é pouco! E é bom lembrar o que já acima se disse: o Missal dispõe de um vocabulário bem mais alargado para exprimir de forma orante a doutrina do sacrifício de Cristo e do seu memorial eucarístico que a Igreja celebra no Santíssimo Sacramento em virtude do mandato que Cristo transmitiu aos seus Apóstolos e que os mesmos Apóstolos transmitiram aos seus sucessores, e em que também a mesma Igreja e cada um de nós se pode associar de forma realíssima. Estude-se mas, sobretudo, reze-se o Missal.

Se do português passarmos à edição típica latina – porque o que se visa nestas provocações é atacar a reforma litúrgica e acusá-la de heterodoxia, como pretexto para divergir da Igreja, dos seus legítimos Pastores e do seu Magistério autêntico (porque o problema de fundo é mais eclesiológico que litúrgico) – verificamos que o MR de 2002 usa 221 vezes o termo sacrifi¬- (nas suas variadas flexões nominais e verbais), ultrapassando, mesmo, o MR de 1962, usado pelos que recusam a reforma litúrgica, em que o vocábulo aparece 177 vezes. E note-se que nas ocorrências do Missal Romano pré-conciliar estão incluídas leituras bíblicas e Salmos que, na reforma litúrgica, transitaram para os Lecionários. Em suma, o novo Missal de Paulo VI é significativamente mais rico do que o seu antecessor no que se refere à expressão eucológica da dimensão sacrificial, pedra de toque da catolicidade. E também podemos acrescentar: «mais tradicional», no sentido da grande Tradição (com maiúscula), da qual tão facilmente divergem os tradicionalistas, agarrados como estão às tradições (com minúscula).
Por fim, quanto ao contexto mais amplo do Autor, que é a Santa Igreja – podemos acrescentar: «una, santa, católica, apostólica» e Romana – temos o seu Magistério ordinário e solene. O interpelante pode ler, por brevidade, o Catecismo da Igreja Católica.


Conclusão

Em suma: só por descaramento e perfídia se pode questionar a expressão autêntica da fé da Igreja – do Concílio de Trento e do II Concílio do Vaticano, de São Pio V e de São Paulo VI, de S. Gregório Magno e de São João Paulo II, de São Pio X e do Papa Francisco, legítimo ocupante da sede de Pedro – tal como expressa na infundadamente contestada linha da tradução oficial portuguesa do Cânone Romano (Oração Eucarística I) numa versão que já foi aprovada em 1969 (presidia à Comissão Episcopal de Liturgia D. Florentino de Andrade e Silva), confirmada pela Santa Sé através da Congregação para o Culto Divino em 17 de outubro desse ano e rezada há 55 anos! A única desculpa será a ignorância de quem pretende ser contundente de forma tão despropositada e inerme.

Um colaborador do SNL