Questões e respostas
Cremação ou incineração
Qual é, neste momento, o entendimento da Igreja Católica Portuguesa quanto ao destino a dar às cinzas que resultam da cremação. É que me confronto com a necessidade de proceder à cremação das ossadas de uma familiar, e gostaria de saber que destinos a dar às cinzas admite a Conferência Episcopal Portuguesa.
Agradeço ao nosso consulente a pergunta que nos coloca. É um tema sensível, delicado e não muito usual. Razões de sobra para o apresentarmos com equilíbrio do ponto de vista católico, já que o consulente pergunta expressamente qual é, neste momento, o entendimento da Igreja Católica Portuguesa quanto ao destino a dar às cinzas que resultam da cremação. Desde já adianto que as normas e orientações que indicarei a seguir, são todas da Igreja Católica Universal e não da Igreja Católica neste ou naquele país.
Se quiser passar por cima de tudo o que vou escrever e ir directamente para a alínea final deste trabalho, aí encontrará a resposta simples à pergunta que faz. Dado tratar-se de um tema actual mas nem sempre muito bem esclarecido, aproveitei a oportunidade para me alongar um pouco mais, de modo a esclarecer outros aspectos e não só o da sua dúvida.
Cemitério e inumação ou sepultura
Os dicionários definem os cemitérios como os recintos destinados à sepultura dos defuntos.
A Igreja Católica considera o cemitério como lugar sagrado, e por essa razão «procura e recomenda que os novos cemitérios... recebam a bênção e neles seja erigida a cruz do Senhor, sinal de esperança e de ressurreição para todos os homens» (Ritual das Bênçãos, 1115; EDREL 3498).
Em consequência da sua fé em Deus, Pai de todos os seres humanos, os cristãos honram nos cemitérios, não só os corpos dos seus irmãos na fé, mas também os daqueles homens e mulheres que aí foram sepultados, independentemente da sua religião, «porque a todos redimiu Cristo na cruz, derramando por eles o seu sangue» (Ibidem), e nas suas romagens aos cemitérios, em certos dias do ano ou sempre que se incorporam no funeral de alguém, têm o hábito de rezar ao Pai celeste tanto por aqueles que «morreram na paz de Cristo como por aqueles cuja fé só Deus conheceu» (Ibidem).
O costume cristão, herdado dos judeus, de inumar os defuntos (inumar deriva de humus, que significa terra), ou seja, de enterrar os corpos daqueles que morrem, acabou por ser considerado pela Igreja como o mais conforme à visão cristã da morte.
Porquê? Porque a inumação ou sepultura, por um lado «recorda a terra de onde o homem foi tirado (cf. Gn 2, 7) e à qual retorna (cf. Gn 3, 19; Sir 17, 1); e por outro lado, evoca a sepultura de Jesus, grão de trigo que, lançado à terra, produziu muito fruto (cf. Jo 12, 24)» (Directório sobre a piedade popular e a Liturgia, 254; EDREL 5902).
Desenvolvamos, de maneira sucinta, o que acaba de ser transcrito. A preferência da Igreja pela sepultura fundamenta-se em dois tipos de textos bíblicos: três do Antigo Testamento, a propósito da criação do homem e do seu fim: «Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo» (Gen 2, 7); «Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e ao pó voltarás» (Gen 3, 19); «O Senhor criou os homens a partir da terra, e a ela de novo os faz voltar» (Bem Sirá 19, 1); e dois do Novo Testamento, a propósito da sepultura de Jesus e da fé cristã na ressurreição: «José de Arimateia tomou o corpo de Jesus, envolveu-o num lençol limpo e depositou-o num túmulo novo, que tinha mandado talhar na rocha. Depois, rolou uma grande pedra contra a porta do túmulo e retirou-se» (Mt 27, 59-60 textos paralelos); «Chegou a hora de se revelar a glória do Filho do Homem. Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto» (Jo 12, 23-24).
Até há poucos anos, por influência do cristianismo na Europa e nos outros quatro continentes, a prática da inumação era corrente nos países com maioria de população cristã, embora houvesse outras práticas em povos maioritariamente não cristãos (China, Índia, etc.), onde, em lugar da inumação ou enterro, se praticava e pratica a cremação ou incineração.
Cremação ou incineração
Cremar e incinerar são duas palavras exactamente com o mesmo significado: queimar o corpo do defunto pelo fogo, reduzindo-o a cinzas. Trata-se de um «costume ritual de muitas culturas e religiões, pelo seu simbolismo de destruição, purificação e sacrifício» (Dicionário Elementar de Liturgia).
Os últimos decénios têm testemunhado como a sensibilidade cristã está a mudar a este respeito. De facto, embora a maioria das pessoas baptizadas continue a optar pela inumação dos seus familiares defuntos, há uma percentagem, a nível nacional, que não ultrapassa ainda os 6%, que escolhem a cremação ou incineração. Isto significa que deixou de ser estranho «que também os cristãos optem por incinerar os restos mortais das pessoas queridas, ou peçam para si mesmas que, à hora da morte, se lhes faça esta forma de exéquias, facto que, no fundo, não marca grande diferença quanto ao destino dos restos mortais, que é pó, e quanto à fé, na sua futura ressurreição» (Dicionário Elementar de Liturgia).
Ainda não há muito tempo fiquei deveras admirado quando os familiares de duas pessoas minhas conhecidas, um homem e uma mulher, cristãos empenhados nas respectivas paróquias e muito praticantes, falecidas repentinamente, optaram pela cremação. Em ambos os casos, todos os amigos que participaram nas exéquias se mostraram surpreendidos, de modo particular os não praticantes.
Terminada a cremação, processo que demora algumas horas, e que é passado na intimidade da família, esta recebe uma pequena urna com as cinzas. A legislação do Estado Português consta do art. 19 do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro de 1998 e exprime-se assim: «1 – As cinzas resultantes de cremação ordenada pela entidade responsável pela administração do cemitério são colocadas em cendrário. 2 – As cinzas resultantes das restantes cremações podem ser: a) Colocadas em cendrário; b) Colocadas em sepultura, jazigo, ossário ou columbário, dentro de recipiente apropriado; c) Entregues, dentro de recipiente apropriado, a quem tiver requerido a cremação, sendo livre o seu destino final».
O que aqui se diz sobre as cinzas resume-se ao seguinte: 1) umas são obrigatoriamente colocadas em cendrário; 2) outras podem ter como destino o cendrário, uma sepultura, um jazigo, um ossário ou columbário, sempre em recipiente apropriado; 3) e outras ainda podem ser entregues a quem tiver requerido a cremação, sendo livre o seu destino final.
Penso que vai ser esta a situação em que o nosso consulente vai encontrar-se um dia destes, a julgar pela suas palavras: É que me confronto com a necessidade de proceder à cremação das ossadas de uma familiar, e gostaria de saber que destinos a dar às cinzas admite a Conferência Episcopal Portuguesa.
Um pouco de legislação canónica
Começo por dizer-lhe que nem sempre o entendimento da Igreja Católica foi o mesmo acerca da cremação ou incineração. Não há que ficar admirado por isso. Dizia assim o Código de Direito Canónico anterior ao actual: «A todos os baptizados se deve dar sepultura eclesiástica. Mas são privados dela... aqueles que tenham mandado que o seu corpo seja queimado...» (CDC de 1917, can. 1239, 3. 1240, 5).
O Código de Direito Canónico actual exprime-se de outro modo: «A Igreja recomenda vivamente que se conserve o piedoso costume de sepultar os corpos dos defuntos; mas não proíbe a cremação, a não ser que tenha sido preferida por razões contrárias à doutrina cristã» (CDC de 1983, can. 1176, 3; EDREL 3201).
Comparando os dois textos no que têm de comum, conclui-se que ambos manifestam claramente a sua preferência pelo piedoso costume de sepultar os corpos dos defuntos. Mas enquanto o primeiro ameaçava de pena eclesiástica os fiéis que optassem pela cremação do seu corpo, o segundo, que é o actual, não proíbe a cremação, a não ser que tenha sido preferida por razões contrárias à doutrina cristã.
O novo Ritual das Exéquias
O novo Ritual das Exéquias fala da cremação nos seus Preliminares nestes termos: «Àqueles que tiverem optado pela cremação do próprio cadáver pode conceder-se a possibilidade de celebrarem as Exéquias cristãs, a não ser que a sua decisão seja devida a razões contrárias à fé cristã. Estas Exéquias celebram-se segundo o esquema em uso na região, de tal maneira, porém, que não se esconda a preferência da Igreja pela sepultura dos corpos, como o próprio Senhor quis ser sepultado, e deve-se evitar o perigo de escândalo ou estranheza por parte dos fiéis. Neste caso, os ritos previstos para a capela do cemitério ou junto da sepultura podem realizar-se na própria sala crematória, se não houver outro lugar apto, evitando com a devida prudência todo o perigo de escândalo e de indiferentismo religioso» (Ritual das Exéquias, 16; EDREL 1414).
Mas a maior novidade deste novo Ritual é o seu Capítulo V, dedicado por inteiro à “Celebração das exéquias no caso de cremação do cadáver”. Vale a pena percorrê-lo de princípio ao fim. Esta celebração pode ter lugar na igreja ou no crematório, com ritos e orações antes ou também depois da incineração.
A primeira observação é esta: «A Igreja prefere que se conserve o costume tradicional de sepultar os corpos dos cristãos, porque com este gesto se imita melhor a sepultura do Senhor» (n. 94). Uma bela formulação, clara e fundamentada. Quantos cristãos a terão ouvido ler ou comentar pelos seus pastores? Talvez muitos dos que optaram ou virão a optar pela cremação o não fizessem se conhecessem as razões pelas quais a Igreja, mãe e mestra de todos os seus filhos, prefere a inumação. Pelo acto de sepultar os corpos dos cristão imita-se melhor a sepultura do Senhor. Quando se diz isto e quando quem lê tem fé esclarecida, não precisa de outras razões para optar pela inumação, de maneira livre, voluntária e por razões de fé.
O referido n. 94 tem uma segunda parte, de uma abertura total à liberdade de escolha de cada cristão: «Os fiéis têm, contudo, a liberdade de preferir a cremação do seu próprio corpo, sem que tal escolha impeça a celebração dos ritos cristãos». Não há qualquer diferença, na celebração dos ritos, entre quem opte pela inumação ou pela cremação. Assim o diz expressamente o n. 95: «O facto da cremação do cadáver não comporta por si particulares diferenças rituais, uma vez que as Exéquias, no caso de cremação, se celebram perante o cadáver, antes da cremação do corpo, e com os mesmos ritos e fórmulas que se usam nas exéquias habituais».
O n. 96 parte duma constatação: não há procissão ao cemitério, mas sim condução do corpo do defunto ao crematório. Por essa razão, «uma vez que este rito não inclui a procissão ao cemitério e a bênção do sepulcro, o rito da Encomendação e Despedida deve celebrar-se na própria igreja no final da Liturgia da Palavra, omitindo a procissão ao cemitério ou ao lugar da cremação».
Mas o n. 97 excede todos os outros em abertura e comunhão de sentimentos com os familiares do defunto, sem esquecer, contudo, a função educadora e esclarecedora de qualquer norma: «Embora seja melhor e mais expressivo celebrar o rito exequial antes da cremação do cadáver, se a família o preferir e o Ordinário do lugar o julgar conveniente, pode permitir-se também que a cremação tenha lugar antes dos ritos exequiais. Neste caso, o rito pode celebrar-se perante a urna com as cinzas, segundo o rito que figura neste capítulo. Se as exéquias se celebram depois da cremação do cadáver, perante a urna, esta será levada, no fim da celebração, ao lugar – cemitério ou columbário – destinado para este efeito. Em caso algum a urna com as cinzas do defunto poderá levar-se de novo à igreja para a comemoração do aniversário ou noutras ocasiões». As cinzas não devem andar a passear e a mostrar-se. A rubrica equipara-as ao corpo do defunto, que uma vez sepultado não volta a exumar-se para o trazer de novo à igreja. Isso seria de muito mau gosto. O respeito devido aos mortos não o consente. A lei romana castigava com penas severas quem violasse um túmulo.
Finalmente a resposta à pergunta feita
Como o dissemos ao começar esta resposta, caro consulente, aproveitámos a sua pergunta para ir muito além daquilo que pretendia saber, e que resumimos agora numa simples frase. Ao levantar as ossadas da sua familiar, pode optar por duas soluções: a) colocá-las numa nova sepultura, ou num jazigo; b) ou cremá-las e colocar as cinzas numa sepultura, num jazigo, num cendrário ou num columbário.
A lei civil permite que leve as cinzas para sua casa e lhe dê o destino final que entender, dentro do que é razoável e humano. A Igreja não o aconselha a proceder desse modo. Diz-lhe antes o seguinte: «No nosso tempo, também devido à alteração das condições de ambiente e de vida, está a consolidar-se a prática da cremação do corpo do defunto... Em relação a essa opção, exortam-se os fiéis a não conservar em casa as cinzas de familiares, mas a dar-lhes a habitual sepultura, até quando Deus fizer ressurgir da terra aqueles que lá repousam e o mar restituir os seus mortos (cf. Ap 20, 13)» (Directório sobre a piedade Popular e a Liturgia, 254; EDREL 5902).
Mais resumidamente ainda: no dia em que tiver reduzido a cinzas as ossadas da sua familiar, deponha-as numa sepultura ou num jazigo. É assim que pensa e ensina não apenas a Conferência Episcopal Portuguesa mas toda a Igreja Católica, esposa bem amada do Senhor, mãe e mestra dos cristãos.
Um colaborador do SNL